Encerramento da programação. Foto: Holofote Virtual

Em Belém, bate-papo sobre cinema celebra a produção local e a importância de narrativas plurais

A 55ª edição do Projeto Circular, que movimentou espaços culturais no centro histórico de Belém, logo no primeiro domingo deste mês, abriu também espaço para um encontro especial: um bate-papo que revelou, entre memórias pessoais, desafios técnicos e reflexões sociais, a força do audiovisual produzido na região.

O ponto de partida foi a exibição de dois curtas, produzidos com apoio de editais da Lei Paulo Gustavo, e um média-metragem, realizado pela Tv Cultura do Pará, para em seguida debater os trabalhos e a realidade de quem faz cinema na Amazônia, num bate papo mediado por Luciana Hage.

Um dos lançamentos foi o curta “A Aventura de Patyzuli no Círio”, uma animação produzida em stop motion, dirigida por Nelson Nunes. Combinando a delicadeza do trabalho manual com a tecnologia da inteligência artificial, o filme apresenta a história de Patyzuli, uma pequena pata que vive uma jornada de resgate em meio aos cenários emblemáticos de Belém, como o Ver-o-Peso e o bairro do Guamá, durante a celebração do Círio de Nazaré.

Segundo a diretora de arte Daniella Andrade, o projeto exigiu meses de dedicação, revelando a intensidade do processo artesanal, em que apenas poucos segundos de filme podem consumir mais de 30 horas de trabalho.

“A Aventura de Patyzuli no Círio”, uma animação produzida em stop motion. Foto: Holofote Virtual

Outro destaque foi o documentário sensorial “Ritmos de Juaba”, que convida o público a mergulhar na sonoridade e na cultura da Vila de Juaba, em Cametá (PA), dirigido por Artur Arias Dutra e André dos Santos.

O projeto, uma coprodução entre a Lamparina Filmes e a Raposa Produções Cinematográficas, mergulha na cultura local, explorando as tradições afro-indígenas da comunidade, como o Samba de Cacete, reconhecido como patrimônio cultural de natureza imaterial do Pará, e ainda a “combina”, o “banguê” e o “bambaê do Rosário”.

Com uma abordagem que prioriza a experiência sensorial, o filme revela a importância da música e das práticas poéticas na vida cotidiana de Juaba, ressaltando o trabalho de grupos locais na preservação das tradições. Mais do que um retrato documental, “Ritmos de Juaba” é uma imersão na resistência cultural amazônica.

Um encontro com o cinema da Amazônia: reflexões

Realizadores no bate papo após as exibições. Foto: Holofote Virtual

Após as exibições, o bate-papo trouxe ao centro da roda temas fundamentais como a importância dos incentivos públicos, a necessidade de formação continuada e a criação de redes de colaboração entre realizadores.

Diretores, produtores e público compartilharam impressões sobre o fazer cinematográfico na região, discutindo caminhos para fortalecer o audiovisual local a partir de sua própria diversidade e potência criativa. Uma das realizadoras, emocionou o público ao narrar como a sua relação com a imagem começou ainda na infância, estimulada pelo avô e pela família de professores.

“Cresci olhando uma foto que ele fez do meu tio abraçando um boneco, com uma perspectiva inventada. Aquilo abriu para mim a possibilidade de brincar e interagir com o lúdico”, contou Daniella.

Foi com essa bagagem de imaginação que ela se lançou no projeto em stop-motion, convidada por colegas às vésperas de um edital. “Eu só tinha meus brinquedos, legos de vários lugares. Eles disseram: é isso! Usa o que tu tens.” O processo, feito com paciência e sensibilidade, atravessou também momentos pessoais intensos, como a lembrança de seu avô. “Senti que precisava honrar o que ele me ensinou: o olhar curioso, a vontade de contar histórias de maneira diferente.”

Tecnologia e mulheres no audiovisual

A Garça, dublada por Eloi Iglesias. Foto: Holofote Virtual

Nelson Nunes, com 25 anos de experiência no audiovisual, também compartilhou os bastidores do projeto. Em tempos de orçamentos apertados, foi preciso recorrer a celulares para as filmagens e improvisar cenários. “Hoje todo mundo tem um celular, então a captação foi toda feita assim. O maior desafio é transformar a limitação técnica em criatividade”, disse.

Ele apontou ainda as contradições do uso de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial, que ao mesmo tempo em que abre possibilidades, ameaça postos de trabalho no audiovisual. “É um debate urgente: como usar sem anular o trabalho humano?”

Outro desafio foi a adaptação do processo de dublagem. Devido a atrasos no edital, a equipe precisou gravar vozes antes mesmo de ter o filme finalizado, invertendo o fluxo tradicional da produção. “Fazer cinema exige mais tempo, nosso cronograma foi muito apertado, mas estamos felizes com o resultado e ainda vamos evoluir mais na linguagem”, pontuou.

Ritmos de Juabá, documentário da Lamparina Filmes. Foto: Holofote Virtual

A conversa também mergulhou em questões estruturais, como a presença feminina no audiovisual. Provocada pela mediadora Luciana, Dani ressaltou a importância de criar ambientes onde as mulheres sejam ouvidas e respeitadas. “Nós fomos maioria na equipe. Nosso diretor sempre considerou nossas ideias. Isso ainda não é o comum, mas deveria ser”, refletiu.

O tema ganhou a adesão dos colegas como Arthur  e André, que reconheceram a importância das mulheres nos processos criativos e técnicos, tanto no audiovisual quanto na cultura popular.

Alem de ter na produção executiva,  Suanny Lopes, Arthur citou a força feminina na manifestação Bambaê e no quilombo de Juabá, lembrando figuras como Maria Piriá. André compartilhou a experiência de trabalhar com uma chefe de maquinária mulher numa coprodução Brasil-Suíça, e o desejo de criar cursos de formação para mulheres em áreas técnicas tradicionalmente masculinas.

Memória e narrativas

Tó: Violão Mestre, em exibição na exposição sobre o músico, no Mis-Pa.

Foi também exibido o média-metragem “Tó: Violão Mestre” (53min.), dirigido por Felipe Cortez, com consultoria de Salomão Habib, apresentou a trajetória do músico, compositor e professor Tó Teixeira, figura essencial da música paraense do século XX. O documentário pode ser conferido, em uma versão menor (26min), na exposição “Tó Teixeira: Mergulho na Vida”, em cartaz no Museu da Imagem e do Som do Pará até o dia 30 de agosto.

Os três filmes apresentados e as falas dos realizadores reforçaram o sentido do audiovisual como uma extensão da memória, da cultura popular e da resistência. Produzir filmes na Amazônia é, ao mesmo tempo, um gesto político e poético. Como disse Nelson, “é uma etnografia, um mergulho no que somos”.

O encontro deixou evidente que mais do que sobre equipamentos ou grandes orçamentos, o cinema que nasce por aqui é sobre gente. Gente que brinca, sonha, luta, inventa e resiste. E, acima de tudo, conta suas histórias – mesmo quando os caminhos são difíceis, mesmo quando é preciso inventar novas formas de caminhar.

“Foi emocionante assistir aos filmes e reconhecer nossas identidades ali, sensoriais, lúdicas, potentes”, finalizou a Luciana Hage, agradecendo aos realizadores e celebrando a força de um audiovisual que pulsa à margem dos grandes centros, mas bem no coração da cultura brasileira.

compartilhe

Categorias

mais lidas

newsletter

Cadastre-se para receber novidades sobre comunicação, arte e mídia em Belém/PA.

Ao se cadastrar, você concorda com nossa política de privacidade.

Ir para o conteúdo