Em um momento em que a emergência climática impõe desafios globais crescentes, a cultura, com sua capacidade de mobilizar, imaginar e transformar realidades, precisa ser reconhecida como parte da resposta à emergência climática.
Nos dias 18 e 19 de março, Belém sediou a oficina “Lideranças Culturais pelo Clima – Das Ideias à Ação”, reunindo mestres, mestras, produtores culturais, comunicadores, realizadores audiovisuais e lideranças indígenas e da cultura popular de diferentes territórios paraenses no Teatro Estação Gasômetro. O encontro foi promovido pela organização britânica Julie’s Bicycle, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura do Pará (Secult-PA).
A proposta central foi reposicionar a cultura no centro do debate climático, entendendo-a não apenas como expressão simbólica, mas como ferramenta estratégica de ação climática, capaz de mobilizar comunidades, transformar narrativas e inspirar políticas públicas mais justas.
É urgente. De acordo com a Organização Mundial de Meteorologia (WMO), o aquecimento global ultrapassou o limite de 1,5 ºC durante 2024, o que contraria o Acordo de Paris, firmado em 2015, o principal tratado climático internacional. Será que já não é hora de focar nas comunidades tradicionais e na cultura como estratégias no combate ao aquecimento global?
Iniciativas culturais de associações, mestras, coletivos e produtores culturais vindos de municípios como Curuçá, Bragança, Marapanim, Salvaterra, Santarém e Cachoeira do Arari, além da capital, marcaram os dois dias da oficina.
Cultura nas COPs: avanços, lacunas e resistência

A apresentação de Alison Tickell, fundadora e diretora da Julie’s Bicycle, foi impactante. Especialista em políticas culturais para o clima, Alison trouxe uma análise precisa e crítica sobre os avanços e desafios da cultura nas COPs. Ela destacou que, até 2021, na COP 26, de Glasgow, a cultura nunca havia sido olhada como estratégia no combate à crise climática.
Naquele ano, embora não tenha sido incluída como um eixo estruturante das discussões climáticas, houve iniciativas paralelas importantes promovidas por organizações da sociedade civil, artistas e instituições culturais.
“A cultura tem o poder de transformar a maneira como nos relacionamos com os dados, com o território e com o outro. Ela traduz informações técnicas em narrativas acessíveis, conecta afetos e move decisões”, afirmou.
Tickell lembrou que a criação dos primeiros pavilhões culturais nas COPs – como o Culture at COP e, mais recentemente, o Entertainment + Culture Pavilion – foi resultado de anos de mobilização da sociedade civil e de organizações como a Julie’s Bicycle.
Na COP 28, uma conquista: finalmente a cultura entrou no centro das discussões sobre a crise climática. Durante o encontro em Dubai, foi lançado o Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura (GFCBCA), co-presidido por Brasil e Emirados Árabes Unidos.
Pela primeira vez, cultura deixa de ser coadjuvante para ocupar um espaço estratégico nas políticas climáticas globais, ao lado de setores como energia e agricultura.
Cultura inclusa, novos desafios

Apesar desses avanços, ainda há grandes obstáculos: “Faltam recursos, reconhecimento institucional e, principalmente, uma escuta real às vozes dos territórios. A cultura ainda é vista como acessório, e não como estratégia”, provocou Alison.
Segundo dados do Entertainment + Culture Pavilion, mais de 80% das atividades culturais desenvolvidas nos espaços das COPs são lideradas por artistas e coletivos do Norte Global. Apenas uma fração dessas ações contempla saberes tradicionais, experiências de povos originários ou expressões culturais da América Latina, África e Ásia. Será que na COP 30 da Amazônia será diferente?
Alison Tickel é uma das principais pensadoras e vozes no campo da cultura e do clima, tanto no Reino Unido quanto internacionalmente.
Ela acredita que sob esse ponto de vista a COP30 poderá ser histórica marcando o momento em que a cultura tradicional e ancestral, a cultura popular podem deixar de ser tratadas como ornamento, passando a ser reconhecida como estrutura e estratégias. Será que vamos conseguir vencer?
A arte como força política e mobilizadora

Durante a oficina, surgiram relatos que atravessam a crise climática pela via da memória e da dor. Uma das participantes compartilhou a lembrança da infância marcada pelo medo: “vi o pavor nos olhos dos meus pais quando uma mineradora explodiu perto da nossa casa. Aquilo ficou em mim”.
Outro participante alertou para o risco da “mercantilização da cultura amazônica”, comparando-a à exploração da própria floresta: “estão transformando nossos símbolos em produtos, como fizeram com as árvores.”
A dimensão emocional e afetiva do clima foi um tema transversal. O comunicador popular e LGBTQIA+ Matheus Botelho destacou que a comunicação cultural e periférica precisa ser central na COP30: “nossos territórios já estão em crise há décadas. A COP não pode ignorar o que já vivemos”.
As experiências compartilhadas mostraram como a arte é, muitas vezes, a primeira linguagem da resistência. Jean Ferreira, do Gueto Hub, contou sobre um projeto de grafite que resgatava a memória de um igarapé canalizado em Belém: “era uma ação artística, mas que virou denúncia, história e futuro ao mesmo tempo”.
A oficina também apresentou o conceito da “Zona Amarela”, uma proposta de espaço alternativo e popular para a COP30, inspirada na experiência da “COP das Baixadas”. Criada por organizações e coletivos de Belém, em 2024, a iniciativa busca garantir a presença da sociedade civil nos espaços decisórios, com atenção a questões de raça, gênero, identidade e território.

Como lembrou Thiago Jesus, da People’s Palace Projects, facilitador da oficina, “a cultura pode ser tão poderosa quanto qualquer dado científico. Ela cria sentido, gera pertencimento e mobiliza corpos.” A fala de Thiago se conecta ao que aponta a Climate Heritage Network, rede global da qual a Julie’s Bicycle faz parte: a herança cultural, quando integrada à ação climática, fortalece a resiliência e a justiça socioambiental.
A oficina encerrou com a construção coletiva de propostas que serão levadas para a COP30, entre elas: garantir financiamento para ações culturais de base comunitária; incluir representantes da cultura nas delegações oficiais; criar um mapeamento de experiências amazônicas em cultura e clima; e promover formações específicas para lideranças culturais atuarem como articuladoras em espaços climáticos.
Além de Alison Tickell (Julie’s Bicycle) e Thiago Jesus (People’s Palace Projects), também foi uma facilitadora, a Isadora Canela (Collective Webs), de Brumadinho (MG). Eles compartilharam experiências, ferramentas e estratégias sobre cultura e ação climática no Brasil e no mundo.
Saiba quem participou:
Aiyra Amana (Associação Indígena Wyka Kwara), André Alcântara (Orquestra Aerofônica), Anête Marajoara (Associação Multiétnica Wyka Kwara), Beto Borô (Alter do Som), Cafá do Pretinhos do Mangue (Associação Sócio Cultural e Ambiental de Curuçá Pretinhos do Mangue).
Carla Romano (Rede Constelar Ancestral), Carla Cabral (EMUFPA / Laboratório de Criação e Produção), Catarina Nefertari (Amazônia de Pé), Claudete do Tijupá (Comissão da Bacia do Rio Marapanim).Eduardo Souza (Mekaron Filmes), Gláfira (Reator Cultural Socioambiental), Iacy Anambé (Associação de Irapã Anambé).
Irene Almeida (Associação Fotoativa), Isaac Loureiro (Campanha Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro), Jacque Carvalho (Usinas da Paz), João Guilherme (Instituto Arraial do Pavulagem), Júlia Garcia (Mekaron Filmes), Nicobates (Associação Sociocultural Outros Nativos), Nina Matos (Museu de Arte de Belém), Paula Amaral (Associação Cultural Na Cuia).
Pedro Ribeiro (Grupo de Artes e Tradição Acauã), Preto de Fortalezinha (APA Algodoal/Maiandeua), Raul Bentes (Espaço Cultural Apoena), Renée Chalu (Se Rasgum Produções), Sabrina Sousa (Rede de Ciberativistas Negras Pará) e Samara Cheetara (Coalizão COP das Baixadas). Eu também participei, representando a Holofote Virtual – Comunicação Arte Mídia.
Também foram convidados a compartilhar falas, Úrsula Vidal (Secretária de Cultura do Estado do Pará), Tainá Marajoara (Iacitata Amazônia Viva), Gunjan Nanda (Entertainment + Culture Pavilion / Dubai Climate Collective) e Samuel Rubin (Entertainment + Culture Pavilion), que contribuíram com olhares diversos e potentes sobre o papel da cultura na agenda climática global.