Jorane Castro e Fernando Segtowick, da geração que retomou a produção paraense no finalzinho dos anos 1990

Audiovisual no Pará: o legado, os desafios e a urgência por políticas públicas

O primeiro Oscar brasileiro, de Melhor Filme Internacional, para “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, renovou esperanças e acendeu discussões sobre o papel e o futuro do cinema em diversas regiões do país e aqui no Pará, não é diferente. Os realizadores paraenses atravessam décadas de esforços e transformações para consolidar esta cena como uma importante expressão artística e cultural da região. Falta, porém, investimento e políticas definidas.

No inicio deste ano, uma reunião convocada por Jazz Mota, representante do audiovisual, no Conselho Estadual de Cultura, deixou clara a insatisfação dos fazedores de cinema com a ausência da política estadual para o setor. Foi solicitado um diálogo urgente com secretaria de cultura do Estado, sobre a Lei do Audiovisual do Pará, a Milton Mendonça.

O chamado foi atendido pela Secult-Pa, que convocou para a próxima quarta-feira, dia 23, uma reunião, de maneira ampla e aberta, a partir das 17h, no auditório Eneida de Moraes, no Palacete Faciola, em Belém, sendo esperada a participação de realizadores, produtores e técnicos, além de todos mais que atuam no audiovisual, seja através da imagem, do som e outra vertentes da cadeia produtiva exigidas pelo fazer cinematográfico.

Os cineastas Fernando Segtowick, da Marahu Filmes, e Jorane Castro, da Cabocla Filmes, da geração que revitalizou o cinema local a partir do final dos anos 1990, em entrevista ao Holofote Virtual, trouxeram reflexões sobre o cenário atual, os desafios e a necessidade urgente de investimentos estruturais e políticas públicas consistentes.

A produção audiovisual tem crescido em todo o Estado, expandindo-se para além da capital, Belém, com polos ativos em cidades como Bragança, Santarém e Marabá, entre outros. Mais do que isso, algumas obras têm rompido fronteiras ganhando atenção internacional.

Apesar da relevância do setor, os cineastas também apontam a ausência de políticas públicas estaduais e municipais como um dos maiores entraves para o avanço cinematográfico no Pará. A Lei Milton Mendonça, sancionada em 2020, que poderia alavancar o cinema local, permanece inativa devido à falta de regulamentação e um fundo específico .

“A gente precisa de financiamento local. Sem isso, ficamos reféns de editais nacionais, que não consideram as especificidades da produção amazônica”, lembra Segtowick.

“Vatapá ou Maniçoba”, de Fernando Segtowick em cadeia nacional

Eles apontam que há dificuldade por parte dos gestores públicos em estabelecer uma visão estratégica. “Enquanto outros estados, como Pernambuco e Ceará, têm políticas culturais consolidadas, aqui no Pará seguimos batalhando individualmente”, critica Jorane Castro.

Os cineastas ressaltam que a valorização do audiovisual transcende questões partidárias, sendo uma estratégia de desenvolvimento econômico e cultural. “Quando lançamos ‘Dias’ e ‘As Mulheres Choradeiras’, nos anos 2000, o contexto era outro. Estávamos começando a acessar os primeiros editais”, diz Fernando, se referindo ao Prêmio Estímulo a realização de Curta Metragem, municipal, e ao Prêmio para Curta Metragem do Minc.

“Esses editais  foram fundamentais para movimentar a cena local e construir o que temos hoje”, relembra Segtowick, que mesmo em meio às dificuldades, viu sua produção Reflexo do Lago, ser indicado de prêmio de melhor documentário no Festival de Berlim em 2020.

O audiovisual paraense sempre evoluiu, passando de produções experimentais para longas-metragens e séries premiadas, mas da primeira década dos anos 2000, pra cá, porém, pouco aconteceu. Em 2008, ainda foi lançado o 1º Prêmio Estímulo de Realização de Curtas-Metragens do Museu da Imagem e do Som (MIS-Pa), mas sem continuidade.

Jorane Castro, professora de cinema da UFPA, fez o primeiro longa de ficção (Ter para onde ir), o documentário sobre o Mestre Cupijó, além de Terruá. E chama também atenção para o foco nas políticas de formação/profissionalização do setor, que ainda enfrenta barreiras significativas.

“O audiovisual é uma indústria que demanda recursos expressivos. Hoje temos cursos de formação e acesso a ferramentas tecnológicas, mas falta uma política que assegure a continuidade e a sustentabilidade do setor”, pontua Castro.

Ecossistema audiovisual

Dona Onete e o Carimbó: cultura paraense em Terruá, filme de Jorane Castro (Foto: Internet/Reprodução)

Fernando e Jorane enfatizam que o audiovisual deve ser entendido como um ecossistema que integra festivais, crítica, exibição e formação. “É preciso pensar o setor como um todo. Se investirmos em festivais, em infraestrutura e em formação contínua, criaremos um ambiente fértil para novas produções e para o fortalecimento do mercado”, argumenta Jorane Castro.

Eles também chamam a atenção para o impacto econômico do audiovisual. Cada real investido em cinema retorna em dobro para a economia, gerando empregos em diversos setores, como transporte, alimentação e hospedagem.

“A produção audiovisual tem um valor simbólico e estratégico que precisa ser reconhecido. Obras como ‘Vatapá’ e ‘Sabores da Floresta’ projetam a cultura paraense para além das fronteiras do estado, promovendo o turismo e fortalecendo nossa identidade”, completa Segtowick.

Com Belém sediando a COP30 em 2025, os cineastas destacaram a necessidade de posicionar o cinema paraense no centro das atenções. “Seria uma oportunidade para mostrar nossa produção e atrair investimentos”, afirma Jorane.

A mobilização do setor para assegurar que as conquistas não sejam perdidas é urgente. “Sem união e engajamento, continuaremos enfrentando os mesmos desafios. É hora de pensar no coletivo e construir políticas que consolidem o audiovisual como um pilar da cultura paraense”, conclui Segtowick.

A regulamentação da Lei Milton Mendonça

2022: Comissão para a regulamentação junto ao executivo. Foto: Baltazar Costa/AID-ALEPA

A Lei do Audiovisual recebeu o nome de Milton Mendonça, como uma homenagem ao documentarista que entre os anos 1960 e 1970 realizou os célebres Cinejornais, produzidos pela Juçara Filmes. Inspirada na política de fomento ao audiovisual de Pernambuco, a Lei Milton Mendonça foi concebida para dar estrutura e continuidade à produção cinematográfica no Pará.

No entanto, passados quase cinco anos de sua sanção, esta segue não regulamentada, tampouco foram estabelecidos os dispositivos que garantiriam sua operacionalização.

Em abril de 2022, dois anos após a sanção da lei pelo executivo, um grupo de trabalho criado pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Alepa, reuniu-se para definir as propostas que embasariam a regulamentação da Lei Estadual Milton Mendonça (nº 9.137/2020).

Na ocasião, ficou acertado que a prioridade seria a criação do Fundo Paraense de Audiovisual, vinculado à Secretaria de Estado de Cultura (SECULT), para gerenciar recursos destinados ao setor. A proposta previa a destinação de 1% da TFRM (Taxa de Mineração) ao fundo, além de doações, convênios e transferências públicas.

Afonso Gallindo (1969 – 2023), articulador do audiovisual paraense. Foto: Baltazar Costa/AID-ALEPA

Uma minuta do projeto de lei foi apresentada, prevendo ainda a criação de um Comitê Gestor e a execução dos recursos pela SECULT, com prioridade para editais voltados a desenvolvimento, produção, finalização, distribuição, formação, pesquisa e preservação audiovisual.

A comissão, oficializada por meio de uma publicação no Diário Oficial do Estado, foi formada por realizadores como a diretora Jorane Castro e o cineasta Januário Guedes, entre outros, mas foram poucas as reuniões que chegaram a acontecer, sem resultados.

“Não seguimos adiante porque não houve mais convocação por parte da secretaria de estado de cultura” , disse um dos realizadores que também fazia parte da comissão.

Há informações de que um estudo sobre o cenário para financiamentos para o fundo tenha sido feito, em formato de consultoria, contratado  pela Fundação Cultural do Pará, mas embora esse documento tenha circulado pela comissão, não chegou a ser discutido e teria sido engavetado.

Após a reunião, em 2022, com Deputado Carlos Bordalo e Secult-Pa. Foto: Baltazar Costa/AID-ALEPA

Quando iniciamos a reportagem, entramos em contato com a secretaria de cultura do estado solicitando um posicionamento sobre esse estudo e o andamento para a regulamentação da lei, mas não houve retorno.

Já o gabinete do deputado Carlos Bordalo, deputado estadual autor do PL que criou a Lei Milton Mendonça, retornou e enviou uma nota que, em resumo diz que a  Lei N° 9.137/2020 , de  fomento e incentivo ao audiovisual no Pará foi criada, restando ao Poder Executivo a sua regulamentação.

A nota também deixa claro que “a criação de fundos de apoio ou quaisquer iniciativas que gerem despesas ao Governo são de responsabilidade exclusiva do Poder Executivo do Estado do Pará. Dessa forma, não é competência do Poder Legislativo propor ou solicitar projetos dessa natureza”.

Na foto estão Andrei Miralha, Indaiá Freire, Junior Soares (Secult-Pa), ao fundo, Januário Guedes, Deputado Carlos Bordalo,  Eliana Pires, Rafael Nzinga, Paulo Afonso e Afonso Gallindo.

Política pública para o audiovisual e outras linguagens

Festival “Tela Verde Samaúma”, em 2023 – reverberar a voz da floresta (Foto: Holofote Virtual)

A convocação para a próxima semana, dia 23 de abril, será fundamental, para avançar. Sem a regulamentação da Lei Milton Mendonça e a criação de um fundo estadual específico para o audiovisual, a cena cinematográfica paraense corre o risco de retroceder, após décadas de articulações coletivas.

A cadeia produtiva da cultura, no entanto, será plena se pensada também de forma ampla e estratégica politicamente. Por isso, paralelamente à questão da Lei Estadual de Cinema do Pará, uma comissão mais híbrida de artistas e produtores, de outras áreas da cultura, também busca diálogos sobre a política pública de cultura em todos os setores.

Parlamentares estaduais e municipais vem sendo procurados e demandados a um debate público sobre a criação dos Fundos de Cultura Estadual e Municipal. Sem os fundos de cultura, peças chave no que chamamos de CPF da Cultura, que completam os Sistemas de Cultura Municipal e Estadual, seguiremos trabalhando de forma pouco crítica e por isso, não eficaz.

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