Depois das raízes afetivas e musicais em Bragança, agora mergulhamos nas memórias de Clemente Schwartz em Belém.
Nascido em 1965, o sexto de sete irmãos da família viveu num ambiente onde a música imperava, marcando toda sua história. Aos 10 anos ele vem morar em Belém, pela primeira vez, e essa paixão só aumentou, mas foi quando ele desembarcou aqui, pela segunda vez, em fevereiro de 1984, é que as coisas de fato aconteceram e marcaram sua trajetória na capital.
Cleo veio cursar Arquitetura e Urbanismo no então Cesep. Ainda no primeiro domingo após sua chegada, acompanhado do amigo e conterrâneo Junior Soares, foi ao show da banda Pau Brasil no CAN — um mergulho imediato na cena musical da cidade. “Uma banda de jazz maravilhosa”, lembra ele.
No local, reencontraram Almirzinho Gabriel, amigo de Bragança, que os convidou para um almoço no sítio da família. Lá, Clemente foi apresentado a um grupo que viria a cruzar seu caminho muitas vezes nas décadas seguintes: Ana Catarina e Tonico, Celso Eluan, Walda Marques, Miguel Chikaoka, Antar Rohit — além dos anfitriões, dona Socorro e o doutor Almir Gabriel.
“Foi a primeira vez que me senti acolhido pelos moradores de Belém, que eu considero a cidade com maior número de pessoas maravilhosas por metro quadrado, dentre todas as que já visitei.”
Naquele período, Belém fervilhava de música ao vivo e encontros artísticos. Os bares mais frequentados eram a Adega do Rei — que teve duas sedes na José Malcher —, o Maracaibo, o Pitubar e o Nativo.
Cleo conta que naqueles tempos subiam aos palcos da noite paraense artistas como Walter Bandeira, Grupo Gema, o saudoso Príncipe, Alfredo Reis, Pedrinho Cavalero, Almirzinho Gabriel, Rafael Lima, Mário Moraes, Ronaldo Silva, Toni Soares, Junior Soares e Marco Monteiro. havia ainda a dupla Beto e Salomão (leia-se Beto Fares e Salomão Habib).
“Perdão por não lembrar de todos. Eram muitos e todos importantes”, ressalta Clemente. Entre esses talentos, porém, um nome se sobressaía em sua memória: “Embora completamente desconhecido, já havia o maior gênio da música paraense, na minha opinião: o incomparável e insuperável Walter Freitas, que só fazia shows em teatros — e muito raramente.”
Já dos anos 1990, Clemente também traz memórias do lendário Baixo Reduto, bar de alma underground localizado no bairro do Reduto, e que se consolidou como um lugar de encontro entre músicos, jornalistas, artistas e boêmios em geral. Clemente o descreve como um “epicentro cultural e de encontros improváveis”.
Da época lembro ainda, além do 3 x 4, depois do Go Fish (1995). Já na virada para os anos 2000, quando surge outro lendário espaço, o Café Imaginário, Clemente diz que já não estava tanto na cena dos circuitos noturnos. Era o prenúncio talvez de sua despedida.
É rock and roll na veia!

Voltando um bocadinho mais no tempo. Foi por volta de 1986, 1987, que o rock paraense viveu seu grande momento, com a explosão de bandas. Duas delas, foram responsáveis pela introdução de Clemente como cantor nos circuitos musicais da cidade. A primeira foi a Nó Cego, quem lembra? “Fui convidado a substituir o vocalista titular, Sérgio Darwich, que havia se mudado para Recife”, recorda Cleo.
O vocalista provisório agradou. “O Cláudio Coimbra, que já era meu amigo/irmão, gostou da minha performance e me convidou para ser vocalista da banda Solano Star, da qual ele era líder e fundador”, relembra Clemente, destacando o impulso fraterno que o lançou de vez na cena musical da cidade.
A Solano Star foi uma das bandas que fizeram história em Belém. Tinha pegada pop-rock, letras românticas e alma de Jovem Guarda. “Nosso som era mais Ira! do que Caetano”, brinca. “As músicas tinham refrão fácil, mas nunca raso”. E Clemente era um vocalista carismático. Os shows no Waldemar Henrique, no campus da UFPA e nos bares da cidade marcaram a época. “Era um tempo em que tudo acontecia ao vivo e com gente que amava o que fazia.”
Estava tudo indo muito bem, bandas e mais bandas surgiam, provocando a criaçã do festival Rock 24 Horas que em sua quarta edição, em 1992, reuniu 48 grupos em uma única maratona sonora. Realizado na antiga Praça Kennedy — hoje Praça Waldemar Henrique —, terminou, porém, em uma grande confusão que praticamente encerrou aquele ciclo do rock local.
Um imenso vazio e o reinício aos poucos
O Rock 24 Horas se tornou lendário marcando a cena paraense nos anos 1990 como uma cicatriz aberta na memória de quem viveu intensamente aquele momento de explosão cultural.
A terceira edição do evento, interrompida por episódios de violência, não apenas manchou uma noite que prometia ser apoteótica como também desferiu um duro golpecontra toda uma geração de jovens artistas e produtores. O rock, que até então ganhava fôlego e ocupava espaços de resistência e criação coletiva, foi transformado em bode expiatório.
“O movimento só veio tomar fôlego novamente com o surgimento do Se Rasgum”, afirma Clemente, ao relembrar o surgimento do festival que começou de forma modesta, com shows no Café com Arte, e tornou-se um dos maiores acontecimentos da música independente no Norte do país.
“O Se Rasgum é um divisor de águas na capital paraense, tanto pela ousadia e imprevisibilidade da curadoria, quanto pelo pioneirismo. É uma coisa ‘ninguém tasca, eu fiz primeiro’, aconteça o que acontecer depois dele.” Para ele, o tributo ao Walter Freitas apresentado pelo festival em 2024 foi um marco.

Hoje, vivendo em Bragança, Clemente ainda carrega Belém dentro de si. “Às vezes, bate saudade de um tempo que não volta. Dos amigos, dos bastidores, do cafezinho da redação, das madrugadas pela José Malcher. Volto pra Belém com frequência. Sempre tem um show, um amigo, uma história pra rever. A cidade me deu muito. Me formou. Me atravessa.”
É a cidade que o acolheu, que lhe deu palco e tribuna. Já Bragança é o refúgio onde ele segue sua história. Entre essas duas cidades, Clemente escreve sua trajetória afetiva e musical, com humor, gratidão e poesia. “Love you, Belém. Até a próxima.”
Série biografias. Entrevista n. 1 – Parte 2.
As fotos nesta postagem são de 2015, quando a banda Solano Star se reuniu mais uma vez, após décadas, em Belém. Cláudio Coimbra estaria em Belém, Leo Bitar abriu o porão da Discosaoleo e, como numa grande conspiração do bem, lá estávamos lá todos nós outra vez. Foi uma catarse!
Aguardem que na terceira e última parte da série, voltaremos a Bragança — não mais à infância, mas ao presente do Cleo. É ali, entre o igarapé da memória e o quintal vivo da criação, que ele transforma sua casa em ponto de encontro, palco informal e território de trocas com as novas gerações. Um artista que continua a escutar, inspirar e respirar cultura como parte do cotidiano.