Na contramão da pressa e dos ruídos, o Quinteto Caxangá lança uma obra curta, mas de escuta profunda. Com apenas quatro faixas, o EP “Transamazônica” se constrói como um trajeto musical sensível e provocador, que propõe escutar a Amazônia através da música instrumental — uma linguagem que, por natureza, ultrapassa as palavras e se alinha àquilo que a floresta também ensina.
“Acreditamos que a música instrumental é capaz de ‘falar’ sobre coisas que palavras não são capazes ou suficientes de o fazer, pois transcende qualquer idioma. Provoca, inquieta, para além de explicações”, afirma Camila Alves, integrante fundadora do grupo, em entrevista ao Holofote Virtual.
O disco, que chegou agora em abril às plataformas, nos traz um Brasil que raramente ocupa o centro das discussões musicais contemporâneas, embora seus sons estejam por toda parte: no marabaixo que reverbera no baixo, no lundu que se arma em cordas e sopros, no baião que se despe da repetição e ganha texturas novas, e no “boi” que fecha o percurso como síntese de força e delicadeza. Um Brasil profundo e poroso, onde o Norte e o Nordeste não são regiões estanques, mas territórios em movimento.
“Nosso desafio foi traduzir isso musicalmente: como expressar essa Amazônia de beleza e conflito, de encontros e resistência?”, questiona Camila.
Essa proposta se materializa já na primeira faixa, “Navio Gaiola”, de Sebastião Tapajós e Antônio Carlos Maranhão, rearranjada por João Marcos Palheta. O marabaixo aqui flutua entre tradição e reinvenção. Em “Lundu Barroco”, de Sara Moraes e Luiz Pardal, o grupo aprofunda essa travessia ao combinar a elegância harmônica com uma ancestralidade latente.
“Baião Gostoso”, de Camila e João, surge com energia e leveza. “Temos uma trajetória que naturalmente dialoga com os gêneros nordestinos, sem jamais abrir mão da nossa identidade amazônica. Essa ponte sempre existiu e é riquíssima”, afirma a violonista, ao refletir sobre os caminhos que moldaram a sonoridade do Caxangá.

O grupo evita os estereótipos fáceis. Não se trata de folclore ou exotismo: “Transamazônica” é escuta política. A música instrumental aqui atua como veículo de memória, crítica e beleza.
Uma travessia construída sobre migrações, encontros, afetos — e também sobre a dureza de um território tantas vezes ignorado ou silenciado, como a própria BR-230, estrada que inspira o nome do trabalho e que jamais cumpriu a promessa de interligar os extremos do país.
E é, justamente dessa escuta que nasce a faixa “Transamazônica”, última do EP, com participação do cantor e compositor Ronaldo Silva, numa espécie de rito de passagem entre o tradicional e o contemporâneo.
“Percebemos que ainda faltava aquela música que carregasse o conceito por si. O conceito nasceu antes, como um comando de questão: como transmitir essa amazonidade? Onde queremos chegar nessa viagem?”, relata Camila.
A música nasceu de uma harmonia “entruncada”, com dissonâncias que desenham paisagens de caos e devastação, até alcançar territórios de beleza e contemplação. A entrada da voz de Ronaldo — emblemática, sabemos, é como um instrumento a mais — reforça a ideia de herança viva, de encontro de gerações.
“Ele nos deixa uma mensagem de perpetuação da nossa música”, conclui Camila.
Escutem. “Transamazônica” é um gesto de reintegração cultural que se faz urgente em tempos de colapso ambiental e resistência dos saberes tradicionais. Uma obra que nos convida a se deixar atravessar por sonoridades que, mesmo sem palavras, dizem muito sobre quem somos — e sobre o que ainda precisamos escutar.
Faixas:
Navio Gaiola
Lundu Barroco
Baião Gostoso
Transamazônica (feat. Ronaldo Silva)
Mais informações: www.instagram.com/quintetocaxanga